quinta-feira, 25 de junho de 2015

A música nova do Emicida é uma exposição antirracismo




Uma das funções da música popular é prover uma sensação de pertencimento, de acolhimento, ao ouvinte. Para isso, há vários caminhos: pode ser apenas o emocional, o trivial uso das "emoções universais" aplicado em casos singulares. Mas também pode ser o termômetro sócio-político, esse mais espinhoso de se declarar. É comum cair em afirmações vazias e gritos de luta infantis. É preciso sentir a temperatura do ambiente e elaborar um conceito rico, não-binário, para chegar pesado e ser pertinente.

Boa Esperança, novo single do Emicida, é um exemplo de pertinência no tema. E de sucesso na elaboração. O rapper discorre sobre o racismo de forma ampla e incisiva; relembrando a origem escravocrata de nossa mazela:

" O tempero do mar foi lágrima de preto..."

A conexão com a realidade atual, carregada de preceitos antigos:

" E os camburão, o que são?
  Negreiros a retraficar..."

É possível notar que o Emicida é capaz de sintetizar, sem esvaziar, a linha do racismo no país: de escravos destituídos de direitos a "cidadão livres" destituídos de direitos. E vai além, relembrando a máxima dos campos de concentração para relativizar a questão do trabalho, tão aceita pelos MCs brasileiros como sinônimo de engrandecimento:

"O trabalho liberta, ou não?
  Com essa frase quase que os nazi varre os judeu - Extinção!"

A expressividade do rapaz da ZN de São Paulo segue, sem medo, ao abordar contradições de um mundo confuso e injusto:

" Tempo louco
   Em que a KKK veste Obey..."

Todo o giro histórico e geográfico volta para a vida cotidiana de quem nasce nas periferias brasileiras e possui cor escura, como uma memória dolorosa e indelével - a temida e cruel abordagem policial. Aqui também fica registrado o espanto com a mídia pouco sensível, ou até mesmo praticante do racismo: 

"Desacato invenção, maldosa intenção
  Cabulosa inversão, jornal distorção..."

A maneira como muitos negros encontram a morte em nosso país também encontra um verso:

"Vence o Datena, com luto e audiência
  Cura baixa escolaridade com auto de resistência..."

Notem que cada passagem aborda mais de um tópico dentro do mesmo tema: a histeria midiática, a violência policial, a educação deficiente.

Dentro da veloz diatribe, Emicida não abandona as emoções triviais: se é importante demonstrar indignação e raiva, também é fundamental que o autor demonstre que é humano, que pode quebrar como qualquer um:

 " Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece..."

A música possui um refrão cantado por J.Guetto  e é afiada como uma lâmina: seca, de batidas cruas (cortesia do Nave) e insistentes, sem maiores intervenções. É uma moldura para uma obra cortante, de mira precisa. O instrumental não contradiz a letra, é companheira de agudo discurso.

Fica claro, portanto, que Emicida sente o ambiente em que vive: um país que se aproxima de ser refém de extremistas, de conservadores e que ainda coça a cabeça ao ver o capital reinar na terra do consumo veloz e efêmero e de bens sociais deficientes. E, definitivamente, um país racista. Que trata desigualmente; que não abre espaço para a discussão profunda. E é mérito do rap ser a ponta artística a lançar o desafio: vamos falar de assuntos espinhosos? Mais ainda, vamos elevar nossas rimas e criar arte dentro desse desafio? O Emicida já disse sim para essa proposta.   


sábado, 20 de junho de 2015

O novo single do Supercordas é intoxicante



E um dos grupos favoritos da casa lançou música nova: o Supercordas botou na rede Maria³, canção que vai integrar o novo álbum, a ser lançado no segundo semestre. E não poderia ser melhor indício de que o trabalho poderá ser dos melhores do ano.

Os elementos tradicionais do Supercordas estão lá: beleza, poesia, riffs e ruídos estonteantes, construção cuidadosa. Mas talvez seja o refinamento dos elementos que faça de Maria³ tão boa: a introdução delicada desvenda só o suficiente do que virá, uma viagem emocional e sensorial arquitetada entre arranjos graciosos, um riff intoxicante e a letra de Bonifrate, cada vez mais próximo de um lirismo descritivo cheio de intuição. Temos o melhor uso do verbo "tuitar"na música brasileira até agora:

"Deslizou sobre o taco tonta e nua
E feito canteiro de obras debaixo da lua
Curte guardar uma arte que não conhecemos
Quer andar cantando mais e tuitando menos"

Os timbres também são importantes (como sempre foram): cada acorde, buscando a harmonia ou uma leve dissonância, é pensado e executado com amplitude. A canção é um arco, que carrega dentro de si uma pequena jornada turbulenta. Saca aquelas bandas que bagunçam sua memória, gerando uma mistura de contentamento e  melancolia sempre que você as ouve? Está aqui um exemplo disso. Maria³ é puro júbilo.

O Ingles mostra a cara do rap de SJC



"4:20, depressão presente/ é o seguinte/ várias fita na mente." Desde que o Neto rimou e apresentou seu Síntese em 2012, o rap de São José dos Campos, interior paulista, ganhou atenção. A mixtape Sem Cortesia, um dos melhores trampos dos últimos tempos, jogou luz sobre outros nomes do Vale do Paraíba.

O MC Ingles é integrante do Distúrbio Verbal e acaba de lançar seu primeiro trampo, Nova Época. Com produção executiva do Neto, mixagem do SPVIC e beats do DJ Sleep, o disco apresenta uma convergência entre a levada veloz do rapper e a ambiência instrumental pesada nos graves, nos climas eventualmente jazzisticos e enfumaçados. As batidas são secas e diretas, e as letras envolvem um diálogo com a mente sobre situação social, elevação espiritual e busca pelo equilíbrio.

Vale notar a ligação entre Sem Cortesia, do Síntese, Delírio Lógico, do Moita e esse trampo do Ingles. Não apenas em colaborações, mas uma ligação estética e espiritual; não sei o que acontece na água de São José dos Campos , mas essas obras apresentam um exercício filosófico: visão do lado sombrio do ser humano, observação social, busca por redenção e salvação da alma. A opção instrumental é pela simplicidade, pela dureza, com alguns acenos e brechas (No Síntese, o reggae). O invólucro é rígido, o interior direto e insistente. Em Nova Época, a produção é menos suja, entretanto.

É claro que há diferenças entre eles: o Síntese engloba uma visão babilônica e tenta encontrar respostas para suas divagações, num delírio constante. Moita, por sua vez, é mais equilibrado, mas pesa mais no lado sombrio. O Ingles parece demonstrar uma abordagem menos profunda, mas isso não desmerece seu trabalho: ao contrário, é uma pensata cheia de recortes, porém com objetivos claros. É a conclusão de que a vida pesa nos ombros, uma sucessão de eventos que deixam marcas e os pensamentos decorrentes dessa conclusão. Cabe um mundo de referências dentro dessa premissa, e o Ingles discorre sobre elas com boa dinâmica.

Nova Época é um bom exercício de rap underground, do tipo que subverte a lógica de refrães no centro, optando por uma estrutura de fluxo contínuo de versos, e produção que decide pela clareza e parcimônia. O rap de SJC vai mostrando uma força interessante e desafiadora.

Baixe o disco aqui.
    

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Música nova do Ogi: Uma Mulher



E o Ogi soltou na web um som novo: Especial para o dia dos namorados, a faixa Uma Mulher chega com produção do Leo Casa1. A música não estará no trampo novo do Ogi, Rá, que tem lançamento em breve.  Em pouco mais de dois minutos a letra detalha uma noite loka com uma mulher especial. A melodia é levada no incrível jeito de cantar do Ogi. 

quinta-feira, 4 de junho de 2015

O Don L está expandindo o jogo



O melhor momento de um artista é quando seu trabalho está em expansão. Não é a reinvenção ou o amadurecimento, processos comumente discutidos. Mas o que seria a expansão? Equilibrar características e distribuí-las de maneira mais ordenada é talvez o tal do amadurecimento. Implodir conceitos e executar uma estética diferente seria a reinvenção.  A expansão é quando o corpo da obra, sem perder suas características, incorpora elementos, sua execução contempla incursões reordenadas e o tecido se torna mais elástico. É algo complexo, e não tão comum. É o navio de Teseu, trocando peças enquanto navega, sem desembarcar seus passageiros. Porém aqui ele está construindo novas acomodações concomitantemente, ao invés de apenas mudar o material.

Don L está expandindo seu jogo. Desde que o Costa a Costa lançou aquela mixtape, o cenário do rapper está em constante expansão. A miríade de referências em Dinheiro, Sexo, Drogas...é forte e corajosa. Em que pese o fato de a criação daquele disco ser um esforço conjunto, e não individual do Don L, a segurança e autoafirmação do rapper se sobressaía. O desenho de imagens ensolaradas e divergentes, das sombras e dificuldades, do submundo e do dinheiro (ou falta dele), das audácias e das paixões é decidido, forte e voraz. Rápido, como um soco. 

"O problema é seu/o mundo é nosso/Então o que nós vai fazer sócio"

O período seguinte, de canções como “Êxodo e Êxito” e"Pra Mandar se Fuder", é uma ponte para o que viria a seguir. Demonstra a expectativa de mudança, a ânsia por coisas maiores. É um momento de preparação, um olhar de soslaio para trás sem perder o horizonte. É a "crise da meia idade aos 25"

"E ouvindo os irmãos dizer: 'Don,cê tem que sair do gueto do gueto/é o sul onde vira algum money, nego'/eu sou mais um nordestino em êxodo e exito/vai assistindo o êxito

O Don L de Caro Vapor é mais incisivo, mais cortante, porém harmonioso, estável. Trabalhando nas mesmas estradas de luz e escuridão, de essência e entusiasmo confrontados com uma perspectiva deprimente, a obra aqui já estabelece um conceito expansivo: das batidas à levada, e principalmente nas letras, o rapper já acumula milhas na vida, e sem deixar de ser aquele que capitaneou o Costa a Costa ao status cultuado, entrega exatamente a medida das dores e das ambições. É um trabalho em que as opções estéticas estão claras, mas, mais do que isso, é o artista se aprofundando em si mesmo, procurando incorporar tudo o que vê, sente e deseja, sem prejuízo de seu arsenal de opções. 

"Pronto pra morrer, eu tava na ativa/Eu sei, deveria dar valor à vida"

"Um pouco de mim em cada dose/um trago de vida/ um trago de morte"

Duas canções recentes de Don L surgiram na rede: O freestyle em cima de “Minha Lei”, da Karol Conká e “Verso Livre N.1 – Giramundo”. Aqui entra mais um capítulo dessa história. Mesmo que sejam pedaços avulsos, sem o invólucro de algo esteticamente definido, são exemplos de mais um passo expansivo dentro do escopo do cearense. Já estabelecido em São Paulo, é possível enxergar que o impacto que a capital paulista dá em seus novos moradores já está imersa na obra. Além disso, o arcabouço de rimas do MC parece cada vez mais rico, entrecortado e dinâmico. Mesmo trabalhando em verso livre, há uma estrutura visível, sem arestas, como um corte fino e elegante.  É certo que ao evoluir sua própria obra, Don L propõe aos demais que o alcancem, ou superem.

"Eu marcho na estrada corrompida/pra terra prometida/Onde as guerras são antigas canções/lições de vida"

O paradoxo do navio de Teseu trabalha questões de identidade. Se as peças de madeira da embarcação foram trocadas por alumínio no trajeto, quando chega ao destino o navio é o mesmo que partiu? Por aqui, Don L segue construindo uma embarcação mais complexa enquanto navega, e com a identidade preservada.