quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O rap redefine a "aristocracia do trabalho"




O Brasil vive uma transformação inegável : a autoestima das periferias e favelas melhorou com os programas de acesso a educação e assistência social, somados aos reais derramados e ao alcance de cidadãos que nunca haviam passado da porta giratória dos bancos a não ser para pagar conta de patrões. Mas os anos de amadurecimento desse processo trouxeram antigas e desagradáveis percepções, e os excluídos passaram a frequentar picos de classe média e adquirir pequenos símbolos de ascensão como smartphones e carros. Bastou para toda uma classe - e não apenas econômica, mas socialmente participativa - passar a bradar antigos preconceitos, de forma agressiva e sistemática. A cidade de São Paulo, com seu higienismo e suas imensas periferias é um grande exemplo dessa tensão que se acumula diariamente. Proibições, abusos policiais, violência e arbitrariedade caminham mecanicamente com uma visão de progresso bizarra, constituída sob preceitos capitalistas que findam inevitavelmente em benefícios de classe e desrespeito à ideia de comunidade. 

Dentro desse ambiente potencialmente desastroso e já saturado, a manifestação artística mais acessível e urgente acena com o engajamento natural do rap. Se a diversidade - inclusive de gênero - do estilo começa a tomar forma, não há negação em relação ao respeito e influência do Racionais: de Emicida a Lurdez da Luz, de Don L a Síntese ou mesmo Flow MC e Rincón Sapiência, Ogi e Projota, o pique e a localização geográfica podem ser diferentes mas há essência de combate e reação em todos eles. O relevante é que nomes como esses descobriram maneiras esteticamente diferentes de construir mensagem semelhante: respirar o ar da cidade e expor suas mazelas, de dentro pra fora. Algo que talvez o samba, o funk e outros subgêneros regionais também reflitam, mas de forma menos centrada. Se um boy fica indignado quando algum "encardido" aparece com a patyzinha, essa também é a reação dos interlocutores da mídia quando são obrigados a falar de alguma manifestação musical periférica que se posicione politicamente. É tão claramente incômodo que não há esforço algum para ao menos compreender a linguagem e o propósito da linguagem pop. Uma ressalva deve ser feita para os poucos que de fato exercem sua função, e ao mesmo tempo, de apontar para nomes dentro do hip-hop que, por ignorância ou deslumbre, alavancam material produzido por quem não respeita de verdade o trabalho produzido.


O historiador inglês Eric Hobsbawn definiu, em seu livro Os Trabalhadores, alguns aspectos do operariado britânico na era do fortalecimento do capitalismo. Havia uma "aristocracia do trabalho"; termo usado para descrever "certa camada superior distinta da classe trabalhadora, mais bem paga, mais bem tratada e geralmente considerada como 'mais respeitável' e politicamente mais moderada do que a massa do proletariado." Na década de 1890, um extrato de classe surgiu, denominada como "classe média inferior". Nas palavras de Hobsbawn " marceneiros, assistentes de marceneiros, descendo até os carvoeiros." Se os neo-mpbistas formam um tipo de "aristocracia do trabalho" no meio independente, o rap pode ter subido para algo como "classe média inferior" na visão dos cadernos culturais. Esses são valores do século dezenove, na Inglaterra industrial. O Brasil que cresce em meio a opressões capitalistas e moralismos de milico em contraste com a ascensão moral de parte dos pobres vive um dualismo perigoso, um passo pra cá e estamos sob cacetetes e bombas. Mas quem escreve a trilha sonora desse país nos anos 2010 não é aristocrata.