terça-feira, 25 de novembro de 2014

Racionais e a chuva fustigante #review de Cores e Valores




Doze anos é muito tempo. É todo um período de mudanças políticas e sociais. De relação e distribuição de música. E de fato, o Brasil de Nada Como um Dia...passou de uma nação enrustida e afogada no neoliberalismo excludente para um país mais inclusivo e de moral alta. O que não mudou foi a própria semente do mal: o racismo, a violência e a ignorância. E disso os quatro pretos mais perigosos não tangenciam; eles mergulham com a devida sabedoria acumulada, e com força do discurso, agora cheio de fragmentos e síntese.

Nada seria tão fascinante porém se não fosse a música. Mais do que a engenharia dos versos, o encaixe desses com os samples (Cassiano, Roy Ayers), os beats e a vibe geral transformam em arte aquilo que é uma pensata dura e pertinente. Não, a vida não passa na televisão e nem te acaricia. Lide com isso. Mas pode te proporcionar alguns minutos de eletricidade pura. É o que Cores e Valores propicia.

Fica chato centrar discurso na duração das músicas, porque será (já está sendo) discutido. Mas aqui as rajadas de versos disparadas em espaço de tempo menor é parte da estética: funciona como uma chuva fustigante, sem espaço pra respiro, como um disco de hardcore, e é punk mesmo, sendo rap como o rap pode ser. É São Paulo em sua crueza, concreto e madeirite, pixo e poça, cheiro azedo no ar. É daqui que sai a inspiração, o paradoxo.

O disco (vou chamar de disco aquilo que está no HD de muitas pessoas agora) tem uma sequência lógica e meticulosamente articulada, como sempre. Cores e Valores realça o trap, que no Brasil já apareceu no trabalho de gente como Flow MC e o grupo brasiliense 3 Um Só. É o peso e a tensão disparadas em seu primeiro momento. "Somos o que somos, cores e valores", direcionando e posicionando o preto na terra dos bandeirantes. Sete faixas velozes, sintetizando ideias, temos que voltar pra entender melhor. KL Jay e os produtores lançando beats com uma facilidade fajuta, trabalho cuidadoso, míssil teleguiado. Só na oitava música, Eu Compro, a névoa se dissipa um pouco, levando mais de três minutos (bastante por aqui), como uma ponte entre os climas. 

Adiante, as coisas parecem manter o olho aberto mas com um tipo de desaceleração importante, um respiro leve pra manter a tensão sem explodir. A Praça relembra exatamente um momento em que a tensão entre poder estatal armado e um público essencialmente oprimido explode. É um tema para finalizar  o trabalho, que passa a dissipar esse clima com O Mau e o Bem, tentando enxergar um "céu azul" em meio á poluição geral. É Edi Rock reflexivo, sem ser nostálgico.      

Quanto Vale o Show, vale ter Mano Brown não sendo factual, mas usando fatos para ilustrar um cenário maior, estória e trajetória. É quando Cores e Valores quase se desarma por alguns instantes, deixando o ouvinte assimilar a corrente. Dentro do contexto, é até compreensível imediatamente, embora quando lançada tenha sido alvo de coçadas de cabeça. Esse alívio deságua no final com Eu te Proponho, que fala sim de amor, um soul que, realista, espera por fuga e coisas diferentes no futuro. 

Cores e Valores expõe o Racionais sendo propositivo. E se rap é compromisso, o grupo se compromete a não engessar sua visão estética, elaborando novas formas de ser relevante em 2014. O mundo muda, a arte também. O que permanece e incomoda, vira combustível. E assim se elabora o melhor banquete que podemos, todos, desfrutar.        
            

Nenhum comentário:

Postar um comentário