Escola pública do interior há vinte anos atrás era aquela coisa: tinha o pessoal da periferia, tinha os classe média (eu me incluía nessa categoria) e tinha os boys, uns burguesinhos cujos pais deixavam de pagar um ou dois anos de ensino privado para fazer aquela viagem pra Miami. Música só na base da fita cassete ou do cd, e pra ter o que conversar, em geral, precisava curtir rock de fm. Mas em meados de 1992 um amigo não parava de cantar Fim de Semana no Parque e falar sobre um tal de Mano Brown. Aquilo era uma realidade pra ele, negro e pobre, mas esquisito pra nós. Rap era só gringo e branco, ou mesclado com rock. Racionais era só uma abstração qualquer, "música de mano". Sim, a ignorância era tremenda.
Mas tinha algo de fascinante na maneira em que o universo versado pela banda pegava forte com a molecada da periferia. "Que porra é essa?" Resolvi pedir uma gravação em cassete pra esse meu amigo. Era Raio-X do Brasil. Foi o primeiro disco de rap nacional que eu ouvi inteiro, e aos poucos passei a curtir: não era apenas a música, mas o fato de ouvir uma banda que parecia "perigosa", diferente do ambiente branco do rock grunge. Pra um moleque de catorze anos, era impressionante: uma banda que falava sobre coisas com as quais tinha contato, de uma forma poderosa, com um som fera (e incomum, pra quem ouvia mais guitarras). E eram caras que pareciam brotar do underground, com um tipo de imagem que eu não via correspondente no Brasil: só as bandas punk gringas (só fui conhecer o Cólera mais tarde) tinham aquele ar ameaçador. No entanto, Racionais era brasileiro, contemporâneo e real.
Pulando vinte e poucos anos pra frente: a gurizada hoje está exposta a centenas de milhares de sons, de todos os gêneros. Eles compõem sua preferência musical de forma não linear: música é acessível, e barreiras de gênero são exterminadas. Nesse contexto, o rap deixa de ser tão estranho e segregado. Racionais é, para o bem ou para o mal, mito e história.
Lançar um disco com doze anos de janela gera uma expectativa monstra no público, ávido e acostumado com a rapidez de lançamentos na internet. E Cores e Valores, diante de um ambiente mais receptivo ao hip hop, poderia ser apenas mais um lançamento de peso, para um público mais heterogêneo. Um trabalho devidamente bajulado pelos deslumbrados que não enganam e ainda vêem o grupo como um elemento pouco familiar. No balanço das coisas, apenas um disco de rap nacional de uma banda importante. Poderia, mas não é. Cores e Valores representa uma imersão tão profunda nas feridas sociais quanto Raio-X do Brasil ou Nada Como um Dia...,assim como uma forma de se posicionar naturalmente como cronistas do cotidiano atual. Musicalmente, é atual e audacioso.
Não há espaço para repetições de fórmula, ao contrário: das batidas ao approach das levadas, das letras sintetizadas ao estilo de produção, Cores e Valores apresenta um rap contemporâneo. Não é uma tentativa de se apropriar da linguagem dos rappers mais jovens, ou uma tentativa de falar mais diretamente com um público menos maduro. Quando KL Jay convida outros produtores pra fazer os beats, está buscando inspiração e evolução; quando Mano Brown dispara versos curtos como rajadas nas primeiras canções, está recalibrando sua dialética; quando Edi Rock elabora memórias ficcionais ou reais, está exercitando sua experiência; Ice Blue soa mais rascante do que nunca, botando banca sobre qualquer assunto.
O resultado dessa força de expressão artística é exatamente um disco sem gorduras, duro e real, aberto a dialogar com o público seja no arranhar do trap, seja ao propor canções curtas como suítes emendadas, sem respiro. Velhos brincando de ameaçadores? Não, apenas um grupo se preocupando em manter sua contemporaneidade ao lançar mão daquilo que já sabem, e daquilo que ainda podem aprender. O Brasil de 2014 não é nem de longe o de 1992. Mas isso não diminui o olhar crítico, o mal estar com a violência policial ou com os arrombados desrespeitosos. Cabem e convivem beats soturnos, um Cassiano remendado, um Roy Ayers sampleado, trap.
"Pelas marginais os pretos agem como reis/Gostar de nós tanto faz tanto fez/Me degradar pra agradar vocês (nunca)" Mano Brown dá a letra logo na primeira faixa. Entre "Vamos fugir desse lugar, baby.../Eu posso ser seu escudo" em Eu Te Proponho, a última música, temos o consumo e a relação de pertencimento social de Eu Compro, dois grandes momentos de Edi Rock, (a crônica gangsta de A Escolha Que Eu Fiz e o relato dos acontecimentos da Virada Cultural de 2007 em A Praça), a afirmação negra de Você Me Deve ("Nova era/os preto tem que chegar"). É bastante coisa, disparada sem perder uma boa essência. Ao contrário, é exatamente essa veloz construção de ideias que impressiona e dá alma ao disco.
Cores e Valores é atordoante. Em 2014, nenhum outro disco brasileiro foi capaz de intoxicar o ouvinte com suas letras ou seu ambiente pesado. Com sua música sinuosa, feroz e dinâmica. A sensação é que o rap praticado no disco ainda é desconfortável pra maioria daqueles que agora o cobrem de elogios, mas no fundo preferem manter distância segura. Por mais que ganhem espaço, que recebam glórias, quem pratica o rap sabe que nunca será aceito plenamente. Mais do que um resmungo juvenil de não aceitação, essa realidade inflama a criação, e mantém a guarda elevada. Ainda é música de excluído. O Racionais entende essa realidade, e a desmembra em pouco mais de trinta minutos de tensão. Continuam sendo perigosos e ameaçadores, uma vitória em uma época de relativizações e cinismo perenes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário