Uma das funções da música popular é prover uma sensação de pertencimento, de acolhimento, ao ouvinte. Para isso, há vários caminhos: pode ser apenas o emocional, o trivial uso das "emoções universais" aplicado em casos singulares. Mas também pode ser o termômetro sócio-político, esse mais espinhoso de se declarar. É comum cair em afirmações vazias e gritos de luta infantis. É preciso sentir a temperatura do ambiente e elaborar um conceito rico, não-binário, para chegar pesado e ser pertinente.
Boa Esperança, novo single do Emicida, é um exemplo de pertinência no tema. E de sucesso na elaboração. O rapper discorre sobre o racismo de forma ampla e incisiva; relembrando a origem escravocrata de nossa mazela:
" O tempero do mar foi lágrima de preto..."
A conexão com a realidade atual, carregada de preceitos antigos:
" E os camburão, o que são?
Negreiros a retraficar..."
É possível notar que o Emicida é capaz de sintetizar, sem esvaziar, a linha do racismo no país: de escravos destituídos de direitos a "cidadão livres" destituídos de direitos. E vai além, relembrando a máxima dos campos de concentração para relativizar a questão do trabalho, tão aceita pelos MCs brasileiros como sinônimo de engrandecimento:
"O trabalho liberta, ou não?
Com essa frase quase que os nazi varre os judeu - Extinção!"
A expressividade do rapaz da ZN de São Paulo segue, sem medo, ao abordar contradições de um mundo confuso e injusto:
" Tempo louco
Em que a KKK veste Obey..."
Todo o giro histórico e geográfico volta para a vida cotidiana de quem nasce nas periferias brasileiras e possui cor escura, como uma memória dolorosa e indelével - a temida e cruel abordagem policial. Aqui também fica registrado o espanto com a mídia pouco sensível, ou até mesmo praticante do racismo:
"Desacato invenção, maldosa intenção
Cabulosa inversão, jornal distorção..."
A maneira como muitos negros encontram a morte em nosso país também encontra um verso:
"Vence o Datena, com luto e audiência
Cura baixa escolaridade com auto de resistência..."
Notem que cada passagem aborda mais de um tópico dentro do mesmo tema: a histeria midiática, a violência policial, a educação deficiente.
Dentro da veloz diatribe, Emicida não abandona as emoções triviais: se é importante demonstrar indignação e raiva, também é fundamental que o autor demonstre que é humano, que pode quebrar como qualquer um:
" Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece..."
A música possui um refrão cantado por J.Guetto e é afiada como uma lâmina: seca, de batidas cruas (cortesia do Nave) e insistentes, sem maiores intervenções. É uma moldura para uma obra cortante, de mira precisa. O instrumental não contradiz a letra, é companheira de agudo discurso.
Fica claro, portanto, que Emicida sente o ambiente em que vive: um país que se aproxima de ser refém de extremistas, de conservadores e que ainda coça a cabeça ao ver o capital reinar na terra do consumo veloz e efêmero e de bens sociais deficientes. E, definitivamente, um país racista. Que trata desigualmente; que não abre espaço para a discussão profunda. E é mérito do rap ser a ponta artística a lançar o desafio: vamos falar de assuntos espinhosos? Mais ainda, vamos elevar nossas rimas e criar arte dentro desse desafio? O Emicida já disse sim para essa proposta.