quarta-feira, 30 de maio de 2012
segunda-feira, 28 de maio de 2012
Neurociência, manipulação e a música intangível
Muitos amigos e conhecidos que estiveram no festival Sónar descreveram com entusiasmo apresentações como a dos escoceses do Mogwai. Baseado em uma estrutura de camadas de guitarras e barulho muito alto, o som da banda deságua quase sempre em catarses melódicas. Artistas muito diferentes estiveram presentes no festival, quase sempre gerando reações entusiásticas na maneira em que manipulavam seu set/show e capturavam a atenção da plateia. Manipulação e catarse. Palavras que remetem a uma relação da neurociência com a música muitas vezes estudada. Quero recordar aqui um estudo canadense publicado no início de 2011 e que gerou um artigo denominado "The Neuroscience Of Music", de Jonah Lehrer na revista Wired.
É sabido que a música (aquela que nos agrada) provoca diversas reações em nosso corpo: pupilas se dilatam, a pulsação e a pressão sanguínea aumentam, sangue é bombeado para as nossas pernas. Essas reações biológicas ocorrem quando aquele som maneiraço atinge nosso cérebro: nesse momento, há uma liberação de dopamina em duas áreas. Segundo Lehrer, essas áreas são comumente associadas a estimulações de prazer, não importando se "estamos fazendo sexo, cheirando cocaína ou ouvindo Kanye". O mecanismo é o mesmo.
A pesquisa canadense condensou, de um universo original de duzentas e dezessete pessoas que declararam sentir "arrepios" ao ouvir suas músicas prediletas, apenas dez indivíduos. Esses indivíduos puderam levar suas próprias playlists, enquanto seus cérebros eram examinados por modernos aparelhos de metodologia complementares. O resultado confirmou a ativação de substâncias no cérebro, mas uma variante da pesquisa trouxe a verdadeira surpresa; uma análise dos segundos que precedem a reação emocional demonstrou uma maior atividade dessas áreas, o que pode ser chamada de "fase de expectativa", uma forma que o nosso organismo encontra para nos prevenir do clímax que sabidamente apreciamos. Mas por que, segundos antes da "catarse", nosso cérebro libera ainda maior quantidade de dopamina? O estudo indica uma reação primitiva, uma expectativa por uma resolução ou satisfação, como a velha relação entre o sinal sonoro que precede a saciedade da fome de um cão, por exemplo. O fato é que o ser humano realiza sua condição de prazer na música não apenas em sua parte favorita, mas também nas que a antecedem (embora os canais de distribuição não sejam os mesmos, mas aqui não entraremos em detalhes técnicos).
Importante ressaltar que os pesquisados ouviram músicas instrumentais, de gêneros "virtualmente variados, de techno a tango". Mas não houve maior especificação: é claro que os ouvintes conheciam as canções, mas elas remetiam à passagens importantes de suas vidas pessoais? Formas de música menos circulares como o free-jazz foram contempladas? Qual a faixa etária dos indivíduos? Teriam idade suficiente para desenvolver um senso nostálgico em relação às músicas? O artigo de Lehrer não responde, mas a pesquisa está disponível aqui - ao preço de 32 dólares. Como eu não paguei, não posso responder se os pesquisadores incluíram todos os detalhes. Acredito que sim. Uma das explicações para a reação de nosso cérebro seria uma natural tendência de tentar "solucionar" uma sequência de notas, ansiando pelo retorno do acorde familiar.
Voltando ao primeiro parágrafo, fica evidente que músicos também utilizam essa manipulação para criar reações em seus ouvintes. Talvez de forma empírica, são sabedores de como dosar uma sequência de notas que conduzirão a algum tipo de conclusão, levando o ouvinte em uma jornada que pode ser prazerosa. Do Mogwai ao Squarepusher, em diversos níveis, bandas trabalham em busca de criar estímulos. A recompensa pode vir através de um intrincado jogo de acordes e harmonias ou em um vulgar solo do U2.
A neurociência ajuda a destrinchar importantes reações de nosso corpo - portanto, resistentes a diferenças culturais - quando estamos expostos à música. Ainda assim, somente a combinação de pesquisas complementares poderia aproximar as reações emocionais humanas de algum veredito científico. Evidente que uma pesquisa como essa traz dados tangíveis de valia importante para os acadêmicos, e no mínimo curiosos para os leigos.Assim como as reações do entrelaçamento de substâncias químicas inseridas em um contexto mais amplo, tão comuns em pesquisas da metade do século passado. Mas como mensurar uma experiência realizada fora de um ambiente hermético, com variáveis indefinidas (companhia, ambiente, estado de humor, performance - nos casos de shows)?
Uma leitura rápida de posts no Facebook traz relatos emocionados, nesses últimos dias, com músicas de fontes díspares: o show "faringítico"da Gal Costa em São Paulo, Criolo levando dez mil em Brasília, os experimentalistas Roger Turner e Urs Leimgruber entortando ouvidos ou o indie-rock do Franz Ferdinand em um parque abarrotado. Sem esquecer de todos aqueles que sozinhos em seus tocadores digitais e fones de ouvido vão tecendo seu caminho, rumo ao trabalho ou qualquer outro evento. Como compreender, para além das dopaminas da vida, o choro que aquela música, naquele exato momento nos traz? É essa intangibilidade da música, sob a perspectiva de quem ouve, que fascina e nos mantém não apenas felizes, mas aliviados pela existência de novos e velhos criadores.
quinta-feira, 17 de maio de 2012
Rodrigo Campos - Bahia Fantástica
A representação artística de um lugar imaginado ou uma experiência vivida traz inúmeras combinações, das mais óbvias às mais inusitadas.O compositor paulista Rodrigo Campos traz para seu segundo disco uma dessas combinações; no caso, de pouca obviedade e criação livre, executada com igual sintonia pelo time de músicos que o acompanham. Se o disco de estreia (São Mateus não é um lugar assim tão longe, 2009) era um compêndio de pequenos contos da metrópole desenhados pela singular leitura do samba, Bahia Fantástica abre uma janela para uma verdadeira imersão na diáspora africana, mais profunda e sinuosa. A assinatura de Rodrigo ainda está presente: fraseados curtos rabiscados, versos que aproximam o imagético do descritivo em rápidas passagens. Mas a riqueza e a densidade das doze canções do álbum surpreendem pela condensação de meticulosa execução e dinâmica ágil, de cores quentes.
O time de músicos - Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, M. Takara, Thiago França e Maurício Fleury - possui um entrosamento e instinto fundamentais; mais do que espalhar timbres e uma parede sonora poderosa rodeando as composições de Campos, ajudou a construir de forma orgânica a concepção fundamental do disco. A viagem de Rodrigo à Bahia resultou em um insight em que disparidades geográficas (há espaço para a citação de elementos paulistanos como Jardim Japão e trens da CPTM dentro das "baianidades" dos temas) não impedem a circularidade da narrativa, centrada menos em descrições e mais voltadas ao campo sensorial, da sensualidade e desejo, do espiritual e da lembrança insistente de um lugar distante. O desenho musical desse cenário é um constante diálogo entre a música africana e suas vertentes nas Américas: da sinfonia funk-soul e do jazz estadunidense ao caráter percussivo dos trópicos, dentro de canções de melodias bem definidas.
Cinco Doces despeja o clima de mistério e sensações do álbum, entre a quietude e o ataque instrumental da banda. É a marcação do compasso e da visão expansiva de Rodrigo para todo o trabalho, mas é também apenas um exemplo do que virá pela frente. Princesa do Mar traz a figura de Andreza, "maluca/ chegou na praia hoje/ pequena iemanjá"; quando a música foi apresentada no show de lançamento do álbum do Passo Torto (projeto de Rodrigo, Kiko Dinucci, Romulo Fróes e Marcelo Cabral) ainda despida de arranjos e percussão aqui apresentados, não possuía o calor emanado no disco. O que torna Bahia Fantástica tão relevante é a fluidez apresentada, em que cada acorde ou intervenção é feita de forma adequada, evitando que a técnica dos instrumentistas traga exageros recorrentes ou alguma repetição de clichês afrobeat . Dessa forma, há espaço para sutilezas perceptíveis apenas em repetidas audições; a delicadeza de Ribeirão, com participação de Criolo nos vocais e a guitarra costurante de Dinucci; a imersão narrativa de Jardim Japão, cantada por Juçara Marçal e o sopro de Thiago França duelando com a percussão de Takara; as camadas e tecidos sonoros de General Geral, em que os teclados de Fleury e arranjos de cordas de Marcelo Cabral formam uma espécie de névoa, em que Rodrigo navega com elegância.
Bahia Fantástica é um disco nascido de imagens e sensações, capturadas com rara inspiração e equilíbrio. Trabalhos meticulosos muitas vezes derrapam em execuções demasiadamente engessadas: o balanço final de um conceito recheado de referências como esse disco, no entanto, é a prova de que é possível realizar com leveza a tarefa de exercitar uma música que dialoga naturalmente com suas influências mais profundas. Um dos mais belos discos brasileiros de 2012 até agora. 8/10
quinta-feira, 3 de maio de 2012
Curumin - Arrocha
Curumin é um músico calejado: como baterista/percussionista já trabalhou com artistas diferentes como Céu e Arnaldo Antunes e esteve no palco com muitos outros como Criolo e Vanessa da Mata. Também é um compositor curioso e despojado, o que conta muitos pontos a seu favor: desde 2003, com seu primeiro álbum, "Achados e Perdidos", passando pelo elogiado "Japan Pop Show" (2008) até chegarmos a esse recém-lançado "Arrocha", Luciano Nakata manteve seu próprio ritmo. Sem pressa para colocar novas canções em registro definitivo, Curumin cultivou um saudável frescor em cada um dos seus discos, tornando-os relevantes mesmo sendo lançados em períodos distantes e espaçados. "Arrocha" é o mais enxuto e direto trabalho do paulistano, um pop ritmado e equilibrado nas influências típicas como música jamaicana, hip-hop, rock e brasileirismos setentistas.
Gravado no esquema caseiro, o disco utiliza muitos elementos eletrônicos: para um baterista de formação, o risco de formar uma massa de batidas insistentes desequilibrando as harmonias é maior. Sabendo disso, Curumin não abriu mão de utilizar toda sorte de variações, sendo inventivo nos momentos em que as músicas pediam mais harmonia e quietude. Sobrou para as vinhetas o papel mais simplista, de conexão despida em relação às canções, em geral de sólida formação melódica. "Afoxoque" traz eletricidade em uma pegada imediata de acento dancehall: um ponto de partida que alimenta a curiosidade do ouvinte, presenteado com uma virada de primeira para a música seguinte, "Selvage"; é o ponto em que a percussão orgânica dá passagem no mix para uma introdução eletrônica, reveladora da habilidade do autor. O dub "Treme Terra" traz mais uma boa novidade: Curumin parece cantar com mais desenvoltura, moldando versos e fortalecendo uma percepção de confiança. Até aqui temos um disco permeado de batidas bem marcadas, melodias claras e uma ligação que não permite silêncios entre uma música e outra. Uma saraivada de batuques que, mesmo empolgantes, poderiam deixar um certo cansaço se persistissem. A sequência com a suave composição original de Russo Passapusso, "Passarinho", é o momento de despressurização: a bela canção é levada com organicidade e é repleta de soluços, caminhos de efeito instantâneo, algo que Roberto Carlos assinaria circa fim dos sessenta, início dos setenta; mesmo assim, sem nenhum ranço de referencial exacerbado, possui um encantamento urgente, um clamor de novos ares românticos.
"Paris Vila Matide", além das citações relativas à metrópole paulista, é uma balada acústica que faz uma reflexão humanista, de relações entre distâncias, pensamentos e a necessidade de aproximação comunicativa. Contrapontos pungentes em relação ao início frenético do disco, "Passarinho" e "Paris Vila Matilde" não surgem como estranhezas, mas extensões naturais do exercício pop - ainda que de forte apelo instrumental - das composições de abertura. "Vestido de Prata", com participação da Céu, é um convite ao baile: como uma noite junina no interior nordestino colidindo com ares jamaicanos, é um hit pronto que aquece a ambiência de "Arrocha". Uma temperatura que não mais cairá, seguida pelo reggae suado de "Doce", o hip-hop de "Blim-Blim" e "Sapo Cururu" e os versos falados de "Acorda". Antes da despedida com "Bambora!", uma inserção dispensável, há mais uma canção ao estilo cantor-compositor: Curumin canta com inegável desenvoltura "Pra Nunca Mais", bonita em sua cadência de uma quase valsa.
"Arrocha" é um disco extremamente enxuto, de canções curtas, coesas, porém de recheio delineado. Equilibrando a natural vocação para o ritmo de beats e percussão marcada, há espaço constante para a fluência melódica e consciência voltada para a absorção natural das influências. Ao cantar "Vou andando só por andar/sonhando sem acordar...(sou) uma pluma/ no macio do ar/arrepio do vento a me levar", o compositor acaba, de forma consciente ou não, resumindo suas intenções e abordagem artística: inspiração e intuição caminhando junto com a conveniência do momento, que se faz correto por circunstância. "Arrocha" é o fruto mais bem-acabado de sua carreira até agora. 8/10
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