terça-feira, 17 de abril de 2012

Vinte anos em dois: Como a música nos move


Passei os últimos dias pensando se deveria criar um texto pra falar sobre os dois anos do blog no ar. A verdade é que eu não sabia nem mesmo por onde começar, o que dizer e, principalmente, se isso era realmente indispensável. Evidente que, como qualquer outra pessoa que tenha se aventurado a postar conteúdo na internet sabe, é motivo de congratulação a persistência em manter ativo por dois anos completos um blog, sendo uma atividade que não rende lucro de forma direta. Mas, ser importante para o autor não transforma o texto em algo relevante para o leitor aleatório, nem mesmo para os assíduos. O risco de cair em um loop irritante de autoelogio (ou auto-comiseração) é grande. Então percebi que os pensamentos e análises que estiveram presentes nesses dias trouxeram motivos mais importantes para a feitura de um texto: a nossa relação com a música, e de que maneira ela pode impulsionar decisões e instigar movimentos em um cenário muito maior.

Em 2010, por motivos pessoais, me reconectei com o exercício da escrita. O amor pela música nunca se alterou desde que, ainda pivetinho, procurava por informações em revistas gringas, trocava dicas com amigos e redigia um zine datilografado que reunia resenhas (com muita coisa chupinhada dos reviews de fora, por pura limitação) e alguns desenhos horríveis. Passei mais de uma década consumindo e sendo o mesmo nerd, mas sem tempo para escrever. Retomar o que já havia sido um objetivo de vida foi muito difícil, já que as palavras só fluem com facilidade para alguns poucos; para mim, é apenas algo conquistado com esforço e repetição. Um enorme gap geracional tomou forma durante esse período: como observado, eu comprei CDs. Muitos, alguns que se assemelhavam mais a troféus em simbologia pela dificuldade - financeira e logística - em adquirí-los. A informação era concentrada, lenta. Dispensável descrever a realidade atual. Na teoria, seria um sonho ver meus textos de cópia única sendo distribuídos para o mundo inteiro. Isso em 1992. Agora, um blog sobre música é mais um entre centenas de milhares, fadado estatisticamente à irrelevância.

É claro que havia anteriormente um caráter mais explícito de paixão: ser autor de um zine meia-boca que não poderia atingir tantos leitores pode ser definido como um ato quase desesperado de espalhar informação "relevante" em um mundo alienado (ah, a inocência e a petulância juvenil). Hoje ter opinião e registrá-la eletronicamente é rito quase obrigatório, e ao mesmo tempo uma atividade considerada banal pela molecada. Há muito de repetição e abandono de argumentação lógica em blogs comandados por meninos e meninas que possuem um mundo tão mais aberto e acessível. Porém, as exceções são exponencialmente mais equipadas do que os sulfites datilografados de outrora: há quem desbrave o mundo das infinitas informações digitais com a mesma essência da energia adolescente pré-Napster, com uma diferença: conhecem muito mais música do que eu, ou qualquer outro ser ordinário conhecíamos antes da revolução do Mp3. Mas, o que conecta um guri dos anos noventa suando para espalhar suas opiniões e um guri em 2012 utilizando ferramentas voláteis com grande habilidade? A resposta passa pela força cognitiva, sensorial e de estímulos que a música nos traz.

A forma de consumo de cultura até os anos noventa envolvia considerável comprometimento financeiro. Quem não tinha grana se virava com cópias, empréstimos, fitas (VHS e cassete) e até aluguel de CDs. Isso trazia uma relação duradoura, fiel. Como descartar o que era tão difícil de se conquistar? O processo de audição de um disco novo, por exemplo, estava inerentemente ligada à absorção de cada acorde ou arranjo contido ali. De forma diferente, o consumo atual se tornou mais custoso apenas para a experiência de espetáculos ao vivo, que tomou curva ascendente de demanda diante da inexistente tomada de lucro com a venda de dispositivos físicos. De forma geral, o fã de ocasião ou o mais interessado se beneficiaram enormemente com a livre (embora combatida com força recentemente) distribuição de arquivos. Antes ou agora, há quem viva no meio, mas despreze a experiência real da música: os que se preocupam com a presença vip em eventos e o reconhecimento nas ruas, mas tratam com desdém a curiosidade e vivem apenas como agentes reativos, longe de acenderem discussões ou arquitetarem argumentos válidos. Natural para quem na verdade prefere viver de uma nostalgia inútil.

Falo aqui da música popular, não apenas por ignorância em relação à produção erudita, mas também pelo fator sempre geracional do pop, a captação do zeitgeist e o reaproveitamento de elementos do passado. Exatamente como conduzimos nossas vidas criando complementos de experiências, a música nos acompanha como um paralelo afetivo, capaz de realizar a tarefa de aglutinar pontos espaçados, gerando uma espécie de reação química: a combinação pode até ser controlada, mas é sempre complexa e sinuosa; "música para cortar os pulsos" para uns, "linda composição" para outros. Um bom disco pode criar faíscas em áreas díspares, como na curiosidade literária ou na inserção política e social. Pode servir como analgésico e, apesar de ter um caráter altamente pessoal, íntimo, também reúne pessoas. Esse tipo de força não foi afetada pelas mudanças no padrão de consumo: talvez seja mais difícil estabelecer uma conexão entre fãs e artistas em um mundo destituído da tangibilidade de outrora, mas  a essência de como o pop nos toca segue inalterada. E é dessa força que se abstrai o estímulo para as dezenas de tarefas diárias que enfrentamos.

Durante um show recente do Criolo, enquanto percebia um sentimento de cumplicidade em uma plateia heterogênea, tive a lembrança de um garoto estigmatizado como "encardido" na escola. Esse moleque, que sabia se defender das ofensas racistas dos boys locais encontrava uma maneira de botar pilha nos playbas: cantava insistentemente "Fim de Semana no Parque" e professava a genialidade de um certo Mano Brown pra uma galerinha que só ouvia ítalo-dance nos bailinhos da cidade, rock tiozão ou grunge (eu, nessa última opção). Como orbitava um universo dividido, me vi muito interessado em saber mais sobre o ídolo da periferia. Aquilo abriu espaço para compreensão de muitas coisas que pareciam confusas para mim. A emoção que me tomou quase vinte anos depois enquanto Criolo comandava com dedicação seu público exemplifica como a música se mistura indelevelmente com nossas experiências pessoais. 

Só em 2012 até agora, muita coisa já foi capaz de gerar alguma onda de entusiasmo, alegria ou o impulso para escrever a respeito: a densidade de Tramp, de Sharon Van Etten, a jornada poética de Siba em Avante, os caminhos de luzes e sombras de Fin, de John Talabot, a robusta entrega de Jason Pierce e seu Spiritualized em Sweet Heart, Sweet Light e muitos outros, alguns já registrados em postagens por aqui. Se a análise crítica tenta subtrair parte dessa imensa pegada emocional ao tentar equilibrar descrições técnicas com a subjetividade da experiência, opta corretamente em não abraçar o cinismo (que muitas vezes mascara  ignorância e até racismo) em textos que poucam acrescentam. Não sei se o blog estará ativo em 2014. Mas motivos não me faltam para acreditar que sim.

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