Se uma característica do pop atual é a diversidade e o hibridismo, também é verdadeiro que certas premissas relacionadas ao passado resistem. Entre discussões a respeito do reaproveitamento do passado através de uma visão multiplicada por referências entrelaçadas, há espaço para aqueles que caminham em um espaço mais delimitado. Mais do que escolhas estéticas revivalistas em relação aos métodos antigos de produção, algumas bandas trabalham mais confortavelmente em uma esfera pré-internet, lugar imaginário em que influências de adolescência ainda soam mais fortes e importantes para a composição do que uma cornucópia de sons e informações. A dupla inglesa Blood Red Shoes possui uma ligação clara com o rock estadunidense dos anos noventa: desde a criação da aspereza melódica de grupos como Babes in Toyland e Breeders (que os convidou para uma edição do festival ATP) passando por toda a comoção punk do Fugazi e Sonic Youth e a agitação grunge do Nirvana. Um compêndio de "rock alternativo" de quem era gurizinho e curtia a simbologia quase espiritual da época.
Essa premissa colocou a banda de Brighton longe das festividades pós-Britpop da ilha, que gravitou inevitavelmente em pequenos agrupamentos de medíocres buscando uma forma de enquadrar o conceito de "indie" encaminhado pelos Strokes em uma nova embalagem de Cool Britannia. Os dois primeiros discos do Blood Red Shoes caminharam longe da badalação habitual, mas não consagraram a banda como alternativa relevante à apatia da cena de rock inglês: ainda em grande débito com fórmulas e respeito demasiado aos seus heróis, Box of Secrets (2008) e Fire Like This (2010) não passaram de trabalhos interessantes, em que a energia estava canalizada na forma e estrutura, mas carente de composições mais eloquentes. In Time to Voices, o novo álbum, não apenas evolui em comparação direta com a abordagem citada, mas se constitui em um ótimo exercício de rock; uma surpreendente evolução.
A música praticada aqui transforma a dinâmica engessada loud-quiet-loud em algo mais sofisticado: como toda boa guitarrista, Laura-Mary Carter utiliza suas customizações de pedais e amplificadores, dessa vez praticando uma contenção mais inteligente e intuitiva, como na abertura com a faixa-título.Perceptível também é a captação da boa voz de Laura, evidente nas apresentações ao vivo mas descalibrada anteriormente. Acompanhando sua companheira, a bateria de Steven Ansell se mostra mais comedida e equilibrada. Essa segurança só se tornou possível porque está envolta em composições mais robustas; Lost Kids flui com a duplicação de acordes de Laura, tecendo um clima envolvente. O single Cold traz um belo pedaço de pop espinhoso, um ataque de impulsos com Carter e Ansell dividindo a cena, nos vocais fortes (Steven é Dave Grohl melhorado e Laura uma riot grrrl afiada) e em seus respectivos instrumentos.
No recheio do álbum, a prova de que a dupla se livrou do excesso de referências: uma sequência de músicas mais lentas, utilizando recursos de estúdio para um efeito expansivo: vozes que se harmonizam, canções divididas em partes, sobreposições e refrões menos bombásticos - mas não menos efetivos - compõem um cenário mais rico e diverso: O aceno psicodélico de Two Dead Minutes, a quente e bela The Silence and the Drones e a acústica Night Light representam um passo diferente no repertório da banda. As letras que retratam decepções e conflitos pessoais avançaram do estágio grunge-for-dummies para algo verdadeiramente arrebatador, se não exatamente profundo. Há espaço para uma ligação mais emocional com o ouvinte, tanto em aproximações mais delicadas como Stop Kicking e Slip Into Blue como em uma pedrada de um minuto e meio (Je Me Perds).
O Blood Red Shoes criou um disco que não abandona as virtudes mostradas anteriormente mas amplia consideravelmente seu espectro musical. Equilibrando peso, sujeira e melodia, envoltos em composições mais robustas, os ingleses fazem de In Time to Voices um álbum de rock cascudo anos noventa que soa bem em 2012. Decerto não estamos diante de uma fúria inteligente estilo Piccioto/MacKaye ou de uma química torta dos Pixies, mas de herdeiros de uma era mais pra bagaceira do que indie-propaganda da Apple. Quando se apresentaram em um gelado Parque da Independência, em São Paulo, no ano passado, uma plateia de adolescentes excitados cantava as canções com apego. Eles ignoraram a atração seguinte do festival, Miles Kane, enquanto tentavam pegar os CDs distribuídos pela dupla, que parou pra trocar ideia após o show. Em plena era do Mp3, ou talvez por causa dela , havia ali uma agitação legítima em torno de uma banda pouco conhecida no país. O Blood Red Shoes caminha para não ser deletado tão cedo dos Ipods mundo afora. 7,5/10