"Não diga que estamos morrendo/hoje não!/Pois tenho essa chaga comendo a razão". A voz é forte mas conduz a melodia de forma leve, contrastando com o jogo de duas guitarras elétricas que arranham e fazem ora um diálogo, ora uma parede dissonante. A voz é de Juçara Marçal, cantora que já caminhou por grupos como Vésper e A BARCA, além de já ter gravado com Kiko Dinucci e ser integrante do Metá Metá. Mas Encarnado é o primeiro disco solo da artista: sua companhia por aqui é formada pelos suspeitos usuais aka Turma-do-Afropunk-Samba-Experimental-Paulista: Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thiago França,e ainda a rabeca de Thomas Rohrer.
As canções do disco frequentemente se aproximam de uma realidade dura e do tema da morte, de emoções árduas e cruas. A ausência de percussão é preenchida por eletricidade e distorção, trazendo uma estética desafiadora e contrastante. Além de canções escritas por integrantes do time acima mencionado, temos composições de Romulo Fróes, Douglas Germano, Gui Amabis, uma música de autoria de Juçara, Siba, Itamar Assumpção e Tom Zé. Curioso que mesmo as peças dos últimos três, separadas cronologicamente e de ambiência muito particular, se encaixam belamente na proposta do disco. A prosa de Siba (A Velha da Capa Preta) é transformada em um tormento de beleza sutil; a ideia de ódio transmitida pela canção de Tom Zé (Não Tenha Ódio no Verão) se esgueira sombria e lentamente; e finalmente, a criação de Itamar (E o Quico?), repleta da tradicional liberdade narrativa, se coloca ainda que involuntariamente como ponto de encontro da Vanguarda de outrora com os músicos de mesma estirpe voraz e criativa da atualidade.
Mais do que as nuances sônicas, Encarnado possui belas letras que percorrem uma ambiência sombria: "Ciranda do Aborto" é dolorosa e gráfica: "Passa na carne a navalha/se banha de sangue/sorri ao chorar" são os versos iniciais de uma narrativa pesada que ainda inclui o desfecho: A ferida se abriu/nunca mais estancou/pra você se espalhar/laceado...pra você descansar no meu braço/aos pedaços". Através de temas como esse se torna mais compreensível a escolha da sonoridade áspera: ela dialoga com letras tão ou mais diretas.
No terreno fértil e abundante do universo musical que os músicos fazem parte (Metá Metá, Passo Torto e os discos solo de Kiko Dinucci, Romulo Froes, Rodrigo Campos, Douglas Germano e Thiago França) reside um tipo de criação que invariavelmente instiga o ouvinte; seja vasculhando o samba ou resíduos perenes da diáspora africana ou até mesmo o punk rock e o free jazz, a turma nos concede uma forma particular de arte. A presença de Juçara agora faz jus a uma das mais belas vozes do Brasil atual, e de quebra serve de companhia brilhante para os demais trabalhos desse universo. Não é exagero afirmar que tal sonoridade inventiva possui relevância que ainda será melhor contextualizada em alguns anos. No entanto, já nos serve a audição de obras como Encarnado, em todo o seu esplendor de imperfeição e ruído. 9/10
Baixe o disco aqui.
Mais do que as nuances sônicas, Encarnado possui belas letras que percorrem uma ambiência sombria: "Ciranda do Aborto" é dolorosa e gráfica: "Passa na carne a navalha/se banha de sangue/sorri ao chorar" são os versos iniciais de uma narrativa pesada que ainda inclui o desfecho: A ferida se abriu/nunca mais estancou/pra você se espalhar/laceado...pra você descansar no meu braço/aos pedaços". Através de temas como esse se torna mais compreensível a escolha da sonoridade áspera: ela dialoga com letras tão ou mais diretas.
No terreno fértil e abundante do universo musical que os músicos fazem parte (Metá Metá, Passo Torto e os discos solo de Kiko Dinucci, Romulo Froes, Rodrigo Campos, Douglas Germano e Thiago França) reside um tipo de criação que invariavelmente instiga o ouvinte; seja vasculhando o samba ou resíduos perenes da diáspora africana ou até mesmo o punk rock e o free jazz, a turma nos concede uma forma particular de arte. A presença de Juçara agora faz jus a uma das mais belas vozes do Brasil atual, e de quebra serve de companhia brilhante para os demais trabalhos desse universo. Não é exagero afirmar que tal sonoridade inventiva possui relevância que ainda será melhor contextualizada em alguns anos. No entanto, já nos serve a audição de obras como Encarnado, em todo o seu esplendor de imperfeição e ruído. 9/10
Baixe o disco aqui.