"Fui percebendo que só se pode fazer arte com pele, vísceras, arrebatando o interior. Percebi também que eu tinha um tema - a malandragem [...] o homem precisa ter alguma grandeza, tem de ter um momento de Homem pelo menos. Meu único medo é passar pelas coisas e não vê-las."
Foi assim que João Antônio, escritor e jornalista premiado, definiu a sua motivação para a feitura de contos e reportagens - e também contos-reportagens - durante mais de trinta anos. Dono de inegável talento para a prosa sinuosa, criativa e voraz, João retratou um universo de personagens que habitavam espaços importantes nos grandes centros urbanos (São Paulo e Rio de Janeiro, cidades onde viveu grande parte da vida), mas que normalmente eram apenas caricaturas para outros escritores e jornalistas. Tal retrato era fruto da experiência pessoal de João Antônio, de origem simples, mas principalmente pela vontade e a fome de vivenciar o cotidiano do povo, dos bares e dos puteiros, e das próprias ruas, misturadas e sem filtro.
Há alguns meses, o primeiro disco de Rodrigo Ogi, o agora reconhecido em diversas listas de melhores (nosso disco do ano) Crônicas da Cidade Cinza chegou aos ouvidos do público. Demonstrando particular destreza para condensar em músicas enxutas e versos diretos um retrato vívido de pessoas que habitam a grande São Paulo - e não apenas seu centro expandido - Ogi estabeleceu um trabalho marcante para o rap nacional. O fluxo constante de ideias, a riqueza de detalhes e o humanismo que desfilam pelas faixas sem apelos emocionais traz um paralelo evidente com a literatura de João Antônio. Assim como a linhagem do rap de Brown a Sabotage, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Lupicínio, Adoniran, repentistas nordestinos e toda a tradição da música brasileira cantada com o foco da realidade, Crônicas... é forte como um soco, cru e direto, sem concessões normalmente visualizadas em trabalhos de quem prefere imaginar apenas o que vê de dentro dos quartos e do ar condicionado dos home offices.
Seria necessário mais do que alguns poucos parágrafos para fazer jus á bibliografia de João Antônio: ainda jovem estabeleceu um clássico já no primeiro livro: Malagueta, Perus e Bacanaço (1963). Ao trabalhar com jornalismo, nunca deixou de manter o olhar afiado, acrescentando elementos ao seu já vasto repertório; quando se aproximou de uma vida típica da "classe mérdea", casado, empregado e pai, deu uma guinada com destino ao aprofundamento de suas relações com o ofício da escrita: "...operário da palavra queimando olhos e criando corcunda sobre o papel e a máquina.", desafeto da cordialidade interesseira de editores, críticos e zé-ruelas em geral.
Fã declarado de João, Ogi relaciona Malagueta... e Guardador (1992) como livros favoritos, assim como os contos Meninão do Caixote e Paulinho Perna Torta. A criação imagética de Profissão Perigo, segunda faixa de Crônicas... não difere tanto de certas passagens de Paulinho Perna Torta. É certo que o motoboy da música de Ogi é um trabalhador honesto, enquanto Paulinho é a malandragem moldada no banditismo. Mas há semelhança na construção do motoqueiro que escapa das armadilhas do trânsito rasgando as vias paulistanas - " Na Vinte e Três de Maio o trânsito engarrafou/mas como sou um veterano sei pra onde vou/Caí numa ruazinha bem no metrô Paraíso/O meu bote foi ligeiro, certeiro e preciso." e o jovem Paulinho e sua bicicleta, funcionário do prostíbulo que diz" Vou pegar a Northmann, subir, desembocar, direto na Barra Funda, ô puxada sentida! [...] Depois, ganho a avenida larga e, numa flechada, alcanço o estádio."
E a linguagem das ruas, a sujeira dos inferninhos e dos botecos, junto de seus habitantes malandros e escolados é tema recorrente para João Antonio, que retrata esse cenário tanto na figura de um leão de chácara como no de um frequentador; é preciso ser da noite pra não pagar de otário. Ogi narra uma dessas noites agitadas em Eu me Perdi na Madrugada: "Pedi uma breja e um licor de cereja/Duas garotas me abordam e uma delas me beija/É o frenesi, eu ali tive tempo de ouvir/Que uma delas era Dani e outra Sueli". O epílogo traz o narrador percebendo que sua carteira havia sido levada durante o "tchaka na butchaka", mas finaliza com "Mas sempre fui ligeiro e ninguém me marreca/Guardei meu graúdo numa parte secreta."
João Antônio também guardava as suas para a imprensa da qual fez parte: na década de setenta, já diagnosticava (ainda que diante de uma realidade distinta da dos dias de hoje):
"O que se está notando na grande imprensa é que ela não questiona mais, ela não interroga mais, ela não coloca em xeque as informações que lhe são trazidas. Então, o que é o repórter hoje? Um bom, hábil, esperto e solerte com paletó e gravata. Sempre com paletó e gravata. Hoje o repórter é um paletó e gravata. Parece um executivo. Bonitinho, muito eficiente, muito espertinho, né?, muito lindo em matéria de informação, de informática e comunicação."
João acreditava que a censura vigente na época mascarava uma preguiça, uma falta de força impulsiva e de simples esforço de pesquisa e reportagem, que gerava um declínio de qualidade nos textos e apatia geral de ideias. Estivesse vivo hoje, lamentaria o fato de que uma geração criada no acesso rápido e vasto da internet produza conteúdo mais raquítico quanto o de anos atrás. A influência da obra de João Antônio foi exemplificada aqui apenas como ilustração. Rodrigo Ogi, mais do que um leitor e fã, também se criou pela cidade pulsante, das ruas e de obras de outros autores, e diante desse caldeirão foi capaz de elaborar e produzir música viva e de qualidade.
O ano de 2011 trouxe outros discos altamente recomendáveis, mas também foi um ano de desacertos na escrita e na fala confusa de quem, ao contrário de João e Ogi, não deu rolês em busca das desventuras e da recompensa, mas preferiu ser comentarista de condomínio. E, de novo, esse comportamento produziu peças pobres de jornalismo cultural e seu reflexo mais próximo, a decrepitude da produção musical. E vice-versa. Foi um ano de Ogi, Criolo, Nuda e Test, mas também de ativistas pós-meméticos e Bandas Mais Bonitas da Cidade. Que as boas inspirações se sobreponham á mediocridade em 2012. E que tenhamos mais rua, malandros, mulheres, cachaça, botecos e menos nazis, Kassabs e fanáticos religiosos. Não podemos passar pelas coisas sem vê-las. Feliz ano novo.
* Trechos de contos e entrevistas extraídos do livro Leão-de-chácara: São Paulo: Cosac Naify, 2002
Nenhum comentário:
Postar um comentário