Talvez seja sintoma de uma crítica recheada de vícios que o preâmbulo de uma resenha seja dedicada não ao conteúdo musical em si, mas à percepção que existe em relação ao autor da obra. Simplesmente por força contextual, é importante lembrar que Mallu Magalhães surgiu como prodígio aos 15, foi alçada a uma condição de estrela de uma suposta cena indie-folk paulistana (mentira, nunca existiu), para rapidamente decair no conceito de parte da imprensa especializada, sob acusação de fazer música simples e inofensiva demais, como uma espécie de fenômeno adolescente descartável. Para além disso, argumentos que sustentavam essa percepção esbarravam perigosamente em concepções vazias, e não raro sexistas. Mais uma vez, uma discussão saudável sobre os méritos - ou falta de qualidade - da compositora foram deixados de lado para dar espaço ao conjunto de erros que atrapalham a credibilidade dos textos sobre música no Brasil: falta de opinião e/ou informação incompleta e/ou inconsistência argumentativa.
Ok, agora podemos falar do que interessa: Pitanga é o terceiro álbum da cantora paulistana, uma marca impressionante para seus 19 anos de idade. O disco foi gravado em São Paulo com a produção de Marcelo Camelo, e o ritmo das gravações avançou lentamente (Mallu descreveu o processo em detalhes em seu blog). Uma das primeiras impressões era a de que o esmero em encontrar timbres corretos pudesse tornar o álbum polido demais, pensado em demasia, e que o elemento de dinamismo pudesse se perder. A tal insegurança descrita pela cantora em seu blog nas escolhas feitas, aliada a uma admirável voracidade em conhecer a obra de artistas diversos sinalizava que Pitanga poderia ser carregado demais: em referências, em arranjos, em devaneios. A primeira grande surpresa é que, das doze faixas, apenas quatro ultrapassam a casa dos dois minutos. E apertando o play qualquer suspeita de pretensão mal concebida de desfaz.
Velha e Louca traz um equilíbrio entre a preferência pela melodia, uma letra mais esperta, levada por uma valsa bluesy entremeada por um recheio bem leve e preciso, Mallu soando mais direta nos versos: "Pode falar que eu não ligo/agora, amigo/eu tô em outra/ eu tô ficando velha, eu tô ficando louca." Cena se aproxima daquela admiração pela música brasileira, e chama a atenção novamente pelos arranjos: Camelo deixou espaços e ambientes dentro das canções sem abandonar a busca pelo tiro certeiro. Daí a explicação para a busca pelos instrumentos específicos e takes adequados que consumiu tanto tempo e trabalho no estúdio. Essa Mallu de Pitanga "tem um coração vulcânico." Sambinha Bom e Olha só, Moreno são baladas abertamente românticas, mas permitem que se encontrem brechas de fragilidade que enriquecem o trabalho da garota como compositora: "E eu me pergunto o que é que eu sou/mas eu não sou mesmo nada...e eu tenho tanto medo." É um grau de construção lírica que a Mallu de discos anteriores costumava evitar, ou apenas não possuía a maturidade para expor. A metade de Pitanga é fechada com Por que voce Faz Assim Comigo: talvez a mais bem entregue canção da carreira da cantora, é adornada por uma instrumentação esparsa na aparência - mas que preenche espaços de forma bela - "Talvez eu deva ser forte/pedir ao mar por mais sorte/e aprender a navegar": Tchubaruba isso não é.
O "lado B" do trabalho mantém a coerência e qualidade apresentadas no início. Na verdade, aqui já podemos identificar outra característica do álbum: dentro das pequenas canções, há momentos, detalhes e curvas que se traduzem de maneira sutil, fazendo com que a audição repetida seja um exercício recompensador. Baby I'm Sure e In The Morning são curtíssimas e ricas. Lonely é mais linear, mas com enorme segurança se impõe através de uma das melhores melodias do disco; Highly Sensitive adiciona um bem vindo aceno ao rock rápido e rasteiro. Cais encerra o trabalho com uma delicada transposição de pianos e ruídos.
Pitanga é o melhor disco de Mallu Magalhães: ela nunca soou tão confortável com sua voz (algo perceptível em apresentações recentes): modulando seus alcances e usando mais a intuição, nem as limitações atrapalham o desenvolvimento da harmonia; suas composições agora possuem letras mais diretas, que denotam emoções menos superficiais, ao mesmo tempo em que suas referências tão grandiosas e díspares (Dylan, Vinícius, Billie Holiday, Gainsbourg, Luiz Bonfá, Mutantes, Ella Fizgerald, etc.) são incorporadas em pequenos pedaços, como quem se assume como aprendiz e não inventora. Sem nenhuma condescendência quanto á idade ou resistências baseadas em preconceitos bobos, Pitanga pode ser considerado um álbum de confirmação, embora ainda deixe espaço para a visão de melhorias. Mallu Magalhães vai ficando mais velha (ou menos nova), mas seu trabalho só melhora. 8/10
Esta foi a melhor e mais completa resenha que li até agora a respeito de Pitanga. De fato, venho escutando o disco desde o último sábado, sem trégua, e ainda não consegui esgotar a sensação de surpresa que toma conta de mim a cada "replay". Algo semelhante ao efeito que surtiu em mim a leitura de "O Aleph", de Borges. Devo estar já na vigésima releitura, com o mesmo apetite e a mesma paixão de quando o li pela primeira vez.
ResponderExcluirObrigado ;)Certas obras possuem esse tipo de apelo: nos instigam e criam curiosidade
ResponderExcluirMuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito bom! Simplesmente fantástico!
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