Algumas coisas importantes
aconteceram desde que “Sulicídio” saiu. A canção de Diomedes Chinaski (Chave
Mestra) e Baco Exu do Blues é sem dúvida uma das mais emblemáticas de 2016,
seja por sua proposição ou pelo seu efeito. De imediato, serviu pra mostrar que
o preconceito, tão combatido na superfície, resiste fortemente nas entranhas do
rap: ofensas de todo tipo aos nordestinos pipocaram nos comentários e threads
online. A reflexão fundamental é que a comunidade hip-hop não conjuga os mesmos
princípios, basta uma fagulha para que vertentes conservadoras apareçam, mesmo
que embrulhadas em arquétipos “desconstruídos”. Porém o impacto mais
importante, e o que talvez determine o sucesso de sua empreitada, é que o rap
produzido no Nordeste passou a ser enxergado fora de seu antes limitado campo
de ação.
É bem verdade que o cearense
Costa a Costa é celebrado país afora há pelo menos uma década, mas o rap
produzido na região só ganha espaço de forma episódica desde então. Como quase
sempre acontece, o que não é escutado parece não existir, refletindo de forma
cruel uma realidade mais ampla de existência de toda uma cultura; para muitos
no sudeste, nordestinos são seres invisíveis, somente lembrados de forma
pejorativa como “incômodo”. Incomoda seus modos, seu sotaque e sua presença
fora dos cercados sociais estabelecidos. A ideia de absorção de elementos
diversos, tão importante para o hip-hop, parece desvanecer diante de uma
enraizada visão formalista e limitante de “pertencimento” a algo superior.
É bem por isso que “Sulicídio” é
perspicaz: ao afrontar seus pares do sudeste, Baco e Chinaski demonstram a real
necessidade de espalhar o som para uma audiência mais aberta, democrática e
ampla nacionalmente. Não é agressão, como alguns sugeriram, mas agressividade
no campo de ideias, expressão eloquente e pedido de empatia. Rap na essência.
Não por acaso, alguns dos melhores raps de 2016 surgiram do nordeste, mais
especificamente do centro criativo já citado: Chave Mestra, de Recife, Baco Exu
do Blues de Salvador e Nego Gallo (Costa a Costa), de Fortaleza, com as
respectivas músicas “Coração no Gelo”, “999” e “Sem Remorso”.
Elas possuem elementos diversos,
alguns em comum. A forte veia personalista diferencia claramente as canções: o
melodismo do Chave Mestra, a agressividade de Baco e a reflexão do Gallo (com
excelentes feats do Coro MC e Frieza). Todas elas apresentam ótima veia lírica, seja
jogando punchlines matadoras (“Vai se fuder para lá” já é definitiva) seja
introduzindo gírias locais (O “boy” do Chave Mestra pode não ser mesmo “boy” do
Racionais). Algo que enriquece demais o jogo também são os sotaques, já que a
levada sofre influência direta, gerando curvas melódicas diferentes, menos
“quadradas” em relação à encontrada no paulistanês, por exemplo. A oscilação
emocional das músicas também agrada, oferecendo ao ouvinte um caleidoscópio de
afirmações, pensamentos e reflexões. Nada aqui é unidimensional. Mas talvez o
que as une seja o extremo potencial para hit. São três músicas prontas e
embaladas pra fazer a cabeça da molecada.
Dessa forma, o rap nordestino adiciona valores
ao cenário nacional. E é sempre parte da construção do macrocosmo do hip hop
incluir, e não rejeitar novas expressões artísticas. Ser capaz de observar as
nuances e levadas de diferentes estados brasileiros deveria nos orgulhar. Cada
vez que artistas locais produzem com qualidade e empreendem, o jogo é elevado. Em
um artigo acadêmico sobre o hip hop estadunidense intitulado “The SocialSignificance of Rap and Hip Hop Culture”, de Becky Blanchard, é citado que “Rappers
são vistos como a voz do povo, da juventude negra urbana, cujas vidas são
geralmente mal representadas ou rejeitadas pela mídia mainstream. Eles são os
guardiões da história da classe trabalhadora negra contemporânea.” E assim se
constrói uma narrativa, uma visão e uma voz a quem geralmente não possui espaço. Paralelamente,
no Brasil o Nordeste apresenta seus talentos, e todos esperamos que eles
continuem ganhando espaço.
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