sexta-feira, 4 de novembro de 2016

"Sulicídio" escancarou as portas para o rap nordestino. E isso é bom.



Algumas coisas importantes aconteceram desde que “Sulicídio” saiu. A canção de Diomedes Chinaski (Chave Mestra) e Baco Exu do Blues é sem dúvida uma das mais emblemáticas de 2016, seja por sua proposição ou pelo seu efeito. De imediato, serviu pra mostrar que o preconceito, tão combatido na superfície, resiste fortemente nas entranhas do rap: ofensas de todo tipo aos nordestinos pipocaram nos comentários e threads online. A reflexão fundamental é que a comunidade hip-hop não conjuga os mesmos princípios, basta uma fagulha para que vertentes conservadoras apareçam, mesmo que embrulhadas em arquétipos “desconstruídos”. Porém o impacto mais importante, e o que talvez determine o sucesso de sua empreitada, é que o rap produzido no Nordeste passou a ser enxergado fora de seu antes limitado campo de ação.

É bem verdade que o cearense Costa a Costa é celebrado país afora há pelo menos uma década, mas o rap produzido na região só ganha espaço de forma episódica desde então. Como quase sempre acontece, o que não é escutado parece não existir, refletindo de forma cruel uma realidade mais ampla de existência de toda uma cultura; para muitos no sudeste, nordestinos são seres invisíveis, somente lembrados de forma pejorativa como “incômodo”. Incomoda seus modos, seu sotaque e sua presença fora dos cercados sociais estabelecidos. A ideia de absorção de elementos diversos, tão importante para o hip-hop, parece desvanecer diante de uma enraizada visão formalista e limitante de “pertencimento” a algo superior.

É bem por isso que “Sulicídio” é perspicaz: ao afrontar seus pares do sudeste, Baco e Chinaski demonstram a real necessidade de espalhar o som para uma audiência mais aberta, democrática e ampla nacionalmente. Não é agressão, como alguns sugeriram, mas agressividade no campo de ideias, expressão eloquente e pedido de empatia. Rap na essência. Não por acaso, alguns dos melhores raps de 2016 surgiram do nordeste, mais especificamente do centro criativo já citado: Chave Mestra, de Recife, Baco Exu do Blues de Salvador e Nego Gallo (Costa a Costa), de Fortaleza, com as respectivas músicas “Coração no Gelo”, “999” e “Sem Remorso”.

Elas possuem elementos diversos, alguns em comum. A forte veia personalista diferencia claramente as canções: o melodismo do Chave Mestra, a agressividade de Baco e a reflexão do Gallo (com excelentes feats do Coro MC e Frieza). Todas elas apresentam ótima veia lírica, seja jogando punchlines matadoras (“Vai se fuder para lá” já é definitiva) seja introduzindo gírias locais (O “boy” do Chave Mestra pode não ser mesmo “boy” do Racionais). Algo que enriquece demais o jogo também são os sotaques, já que a levada sofre influência direta, gerando curvas melódicas diferentes, menos “quadradas” em relação à encontrada no paulistanês, por exemplo. A oscilação emocional das músicas também agrada, oferecendo ao ouvinte um caleidoscópio de afirmações, pensamentos e reflexões. Nada aqui é unidimensional. Mas talvez o que as une seja o extremo potencial para hit. São três músicas prontas e embaladas pra fazer a cabeça da molecada.

Dessa forma, o rap nordestino adiciona valores ao cenário nacional. E é sempre parte da construção do macrocosmo do hip hop incluir, e não rejeitar novas expressões artísticas. Ser capaz de observar as nuances e levadas de diferentes estados brasileiros deveria nos orgulhar. Cada vez que artistas locais produzem com qualidade e empreendem, o jogo é elevado. Em um artigo acadêmico sobre o hip hop estadunidense intitulado “The SocialSignificance of Rap and Hip Hop Culture”, de Becky Blanchard, é citado que “Rappers são vistos como a voz do povo, da juventude negra urbana, cujas vidas são geralmente mal representadas ou rejeitadas pela mídia mainstream. Eles são os guardiões da história da classe trabalhadora negra contemporânea.” E assim se constrói uma narrativa, uma visão e uma voz a quem geralmente não possui espaço. Paralelamente, no Brasil o Nordeste apresenta seus talentos, e todos esperamos que eles continuem ganhando espaço.


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